Numa pequena localidade à beira do
Rio Araguaia, emerge a brutalidade dos que se julgam donos do Brasil.
A reportagem é de Taís González e Bruna Bernacchio e publicada pelo
sítio Outras Palavras, 29-09-2013.
Tiros foram disparados contra casas
de religiosos. As moradas de dois pequenos agricultores (um deles, também
vereador) foram queimadas até a completa destruição. A rodovia MT 100, que dá
acesso à cidade, foi bloqueada. Milícias armadas detiveram um ônibus com
pesquisadores e estudantes do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e
tentaram revistar seus ocupantes. Máquinas foram colocadas na pista de pouso do
aeroporto e montaram-se estratégias para evitar a chegada de pessoas pelo rio
Araguaia. Entre 20 e 22 de setembro, a pequena cidade de Luciara (2.300
habitantes), no extremo nordeste do Mato Grosso (1160 km. de Cuiabá), viveu de
forma concentrada a violência que os grandes proprietários rurais praticam há
séculos contra os que resistem a seu poder no campo.
Motivo: um pequeno grupo de
fazendeiros quer evitar, à força, a criação de uma Reserva de Desenvolvimento
Sustentável no município. A constituição da unidade é proposta do Instituto
Chico Mendes (ICMBio), Visa evitar que se concretize uma ameaça social e
ambiental. Há algum tempo, os latifundiários – na verdade “grileiros”, que
ocuparam terras públicas – estão avançando sobre os pequenos sítios mantidos,
em condições comunais, sustentáveis e de integração com a natureza, por cerca
de cem famílias. São os “retireiros do Araguaia”.
Há mais de um século, desde a
colonização de Luciara, caboclos vivem da criação coletiva de gado em Mato
Verdinho, uma terra da União na beira do Araguaia. São pequenos ordenhadores,
que criam à solta seu gado nas pastagens naturais do cerrado e varjões da
região, numa dinâmica de agroextrativismo do capim nativo, de forma extensiva e
com pouca alteração da paisagem natural. É uma prática tradicional, adequada às
características ecológicas e sociais locais. Nestas áreas, há o espaço do
retiro, local de moradia e manejo do gado, organizado individualmente ou em
grupo. Nos retiros são construídas casas, piquetes para manejo de gado, currais
e cisternas. Varjões, lagos, rios, matas não inundáveis e toda a paisagem é de
uso comum.
Há cerca de quinze anos, os caboclos
articularam-se e formaram duas organizações: Associação dos Retireiros do
Araguaia (ARA), e Associação dos Produtores Rurais do Mato Verdinho (Aprumav),
apoiada por professores e alunos da Unemat, que mantém uma unidade em Luciara.
Aos poucos, desenhou-se a ideia de instituir a Reserva de Desenvolvimento
Sustentável (RDS). Trata-se de uma das categorias definidas no Sistema Nacional
de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC). Visa preservar territórios onde
populações tradicionais têm sua subsistência emsistemas sustentáveis de
exploração dos recursos naturais. A reserva, julgam os retireiros, poderá frear
o avanço de pecuaristas.
Em 21 de setembro, espalhou-se o
boato – depois não confirmado – de que técnicos do ICMBio chegariam à cidade,
para iniciar os estudos necessários à criação da RDS. “Tem algumas pessoas, com
interesses contrários, disseminando informações erradas de que esses
fazendeiros seriam retirados da área. O processo ainda não está pronto, mas precisamos
aprofundar esse debate”, disse Fernando Francisco Xavier, representante do
instituto no Mato Grosso. Já em 19 de setembro, aliás, os grileiros haviam
barrado, segundo a Comissão Pastoral da Terra, dois geógrafos. Também barraram
na estrada, por duas vezes, o ônibus da Nova Cartografia Social – um projeto
que estimula os povos amazônicos a se auto-conhecerem e mapearem, como parte do
desenvolvimento de suas identidades coletivas. Jagunços queriam revistar o
veículo, ameaçaram incendiá-lo e proibiram que fossem tiradas fotografias.
Também impediram que o grupo seguisse até São Félix do Araguaia. Os geógrafos e
alunos pretendiam realizar uma Oficina de Mapas com os retireiros de Luciara.
A prelazia da cidade, braço da Igreja
Católica, também virou alvo porque é “acusada” de apoiar o projeto de reserva.
Há alguns meses, padres e líderes comunitários foram ameaçados por grupos
ligados aos políticos e fazendeiros da região, contrários à demarcação da Terra
Indígena Marãiwatsédé, área ocupada pelos Xavantes até a década de 60. O bispo
Emérito de São Félix do Araguaia, D. Pedro Casaldáliga, teve que deixar sua
casa após seguidas ameaças de morte realizadas por esses grupos.
Na terça-feira (24/9), a Polícia
Federal finalmente chegou ao local. Cumprindo ordem judicial, executou a prisão
temporária de dois homens, indiciados pelos crimes de constrangimento ilegal,
dano, incêndios e formação de quadrilha. A situação segue tensa em Luciara. Lá,
o latifúndio expôs suas garras – mas encontrou resistência.
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